O Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) decidiu que a filha que deixa a sua atividade profissional para passar a dedicar-se, exclusivamente, a cuidar dos pais face à idade avançada e aos problemas de saúde destes, age no cumprimento de uma obrigação natural, não lhe assistindo o direito de reclamar da herança dos seus pais o montante das retribuições que deixou de auferir.

O caso

Uma mulher intentou uma ação contra a irmã pedindo para que esta reconhecesse que tinha sobre a herança dos seus falecidos pais um direito de crédito correspondente às remunerações que deixara de receber quando, a pedido deles, aceitara deixar o seu trabalho, como empregada de balcão, para se passar a dedicar em exclusivo a cuidar dos seus pais, face à sua idade avançada e aos seus problemas de saúde.

Fê-lo alegando que o valor desse seu direito de crédito sobre a herança era muito inferior ao que os seus falecidos pais teriam de pagar se tivessem sido internados ou colocados num lar ou se tivessem contratado pessoal especializado para deles cuidar, e que caso o mesmo não fosse reconhecido, tal traduzir-se-ia num inaceitável enriquecimento da herança, e da sua irmã, à custa do seu empobrecimento.

O tribunal julgou essa pretensão manifestamente improcedente, decisão da qual foi interposto recurso para o TRG.

Apreciação do Tribunal da Relação de Guimarães

O TRG julgou totalmente improcedente o recurso ao decidir que a filha que deixa a sua atividade profissional para passar a dedicar-se, exclusivamente, a cuidar dos pais face à idade avançada e aos problemas de saúde destes, age no cumprimento de uma obrigação natural, não lhe assistindo o direito de reclamar da herança dos seus pais o montante das retribuições que deixou de auferir.

Os deveres de respeito, auxilio e assistência a que pais e filhos se encontram mutuamente vinculados encontram-se normativamente consagrados pelo que os direitos e obrigações que emergem desses deveres são verdadeiras obrigações jurídicas e não meras obrigações naturais, decorrentes de meros deveres de ordem moral e ética a que os filhos se encontram vinculados em relação aos pais e que estes cumprem por dever de justiça comutativa.

Deste modo, sempre que os filhos incumpram com esses deveres de respeito, auxílio e assistência para com os pais, incorrem no incumprimento de verdadeiras obrigações jurídicas, incumprimento esse que, inclusivamente, os pode tornar indignos para efeitos sucessório, fazê-los incorrer noutras consequências civis, como a inabilitação sucessória, ou mesmo em responsabilidade criminal.

Esse dever de auxílio importa a obrigação dos filhos de socorrerem e auxiliarem os pais em situações de crise, urgentes e anómalas, como é o caso de doença ou de vulnerabilidade decorrente da velhice, e implica para os filhos um conjunto de obrigações, de conteúdo complexo, de assistência moral ou espiritual, de apoio físico e material, consoante as necessidades dos pais e a possibilidades dos filhos em prestar-lhos.

Não obstante, esse dever não obriga a que os filhos deixem de exercer a sua atividade profissional para passarem, em exclusivo, a dedicar-se a cuidar dos pais, face à idade avançada ou à situação de doença destes. Isto porque, embora se trate de uma obrigação legal dos filhos em relação aos pais, essa obrigação não é incondicional, na medida em que está dependente das efetivas e reais possibilidades dos filhos em lhes prestar esse apoio. Pelo que a mesma nunca poderá implicar a obrigação dos filhos de deixarem de exercer a sua atividade profissional, sob pena de estes poderem colocar em crise a sua própria sobrevivência económica e a do seu agregado familiar nuclear e, bem assim, se recusar aos filhos a concretização do seu direito de personalidade de prosseguirem uma atividade profissional remunerada como fator de realização pessoal e social.

Assim, se a filha deixou de exercer a sua atividade profissional, a pedido dos seus progenitores, para se dedicar exclusivamente a cuidar daqueles, fê-lo por sua iniciativa e, sem dúvida alguma, no cumprimento de um dever de ordem moral ou social a que a mesma, enquanto filha, se achava vinculada. Ou seja, fê-lo no cumprimento de uma obrigação natural, sendo que as obrigações naturais se fundam num mero dever de ordem moral ou social, não sendo o seu cumprimento judicialmente exigível, mas correspondendo a um dever de justiça.

Como tal, não lhe assiste nenhum direito de crédito sobre a herança equivalente aos montantes das retribuições que deixou de auferir por via dessa sua decisão. Nem com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, uma vez que esse enriquecimento tem causa justificativa, que é precisamente o facto da mesma ter acedido a esse pedido dos pais, deixando de exercer a sua atividade profissional e passando a deles cuidar sozinha no cumprimento de uma obrigação natural.

Via | LexPoint
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no processo n.º 5717/17.8T8VNF.G1, de 20 de setembro de 2018    

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